A República e os trabalhadores
No mundo ocidental, as fábricas dominaram paisagens antes ocupadas por campos e cidades pequenas ao longo do século XIX. No Brasil, mesmo que ainda periférica devido ao peso da grande lavoura na economia do período, a industrialização ganhou corpo no começo do século XX, especialmente em grandes centros urbanos e nos seus entornos. Conforme se consolidava a indústria, a classe trabalhadora também foi tomando uma forma mais coesa. Os interesses dos trabalhadores convergiam para pautas muito próximas, já que estavam submetidos às mesmas situações cotidianas. E o sindicato foi o principal instrumento de articulação das lutas comuns.
Desde a primeira greve do ABC, registrada em 1906, na fábrica Ipiranguinha, em Santo André, até a consolidação da segunda onda sindical na década de 1930, a greve foi a forma utilizada pelos trabalhadores brasileiros para expor suas vontades a autoridades e empregadores. Em todas as ondas de protesto (1913, 1917, 1919, 1920 e 1927), deixar os postos de trabalho, marchar pelas ruas e enfrentar a repressão mostraram-se parte de uma estratégia que possibilitava conquistar ganhos salariais e reivindicar direitos garantidos por lei. Entre 1913 e 1917, ocorreu o primeiro ápice do sindicalismo na região. Pautados principalmente por valores anarquistas, os operários lutavam por melhores condições de trabalho, contra jornadas longas, pela garantia de direitos básicos, como férias remuneradas, e por um mundo mais igualitário. Assim conseguiram as primeiras leis regulamentando jornadas, férias e proibindo o trabalho infantil.
O assassinato de Constantino Castellani
Jornal "O Combate". Edição de 12 de julho de 1917. Anno III,
NUM. 654.
A greve de julho de 1917, em São Paulo, detonada pela morte de um sapateiro espanhol, foi um grande protesto das classes trabalhadoras que desencadeou repressão igualmente forte. Nos meses seguintes e ao longo de 1918, agentes da polícia e o próprio empresariado perseguiram, prenderam e demitiram as lideranças da greve. Dois anos depois, como resposta, os trabalhadores socialistas e anarquistas que não haviam sido presos saíram das fábricas e começaram uma passeata conclamando os demais operários a cruzarem os braços para protestar em favor dos líderes perseguidos. A passeata iniciada em Santo André, em 1919, se desenrolava de forma pacífica, até que os trabalhadores – principalmente mulheres tecelãs – chegaram perto de uma loja de móveis. A força pública pediu para que não prosseguissem. Constantino Castellani, com 18 anos e uma das lideranças locais, revidou o pedido com gritos; foi alvejado e morreu. Seu corpo foi recolhido e levado em procissão para o cemitério da Vila Assunção. O túmulo se tornou um ponto de peregrinação e comemoração do martírio de Castellani e da história da organização sindical da região.
A revolta resultante da morte do jovem militante fez a greve espalhar-se para o interior e, em menos de uma semana, houve ações operárias em Jundiaí e Campinas. A repressão foi novamente dura e o movimento se encerrou com tiros e prisões. Apesar da comoção dos trabalhadores, o sindicalismo da região demoraria a ganhar força novamente; e, quando o fez, nunca perdeu de vista o exemplo de Castellani.
Diversidade da classe trabalhadora
Entre 1920 e 1930, o número de trabalhadores fabris no ABC cresceu de cerca de 4.320 a aproximadamente 6.400, sendo 40% empregados no setor têxtil, seguido pelo metalúrgico (1.217 pessoas), químico (1.005 pessoas), moveleiro (885 pessoas) e cerâmico/materiais de construção (597 pessoas) [FRENCH, 1995: p. 47]. Pouco tinham em comum aqueles italianos, espanhóis, judeus, negros, mestiços, as mulheres e crianças que compunham a classe trabalhadora. A diversidade era grande em termos de nacionalidade, faixa etária, gênero e etnia.
Os homens, em geral, eram trabalhadores mais qualificados — carpinteiros, marceneiros, mestre de obras, supervisores —, enquanto mulheres e crianças não eram qualificadas, atuando geralmente como tecelãs. Dois grupos eram subrepresentados no movimento operário: os negros, por conta do racismo de empregadores e trabalhadores; e os homens adultos, já que, em geral, eram capatazes ou supervisores – atuando mais como reguladores da rotina de trabalho do que como sujeitos que a questionavam.
Assim, a imagem clássica de que a classe operária é composta de homens proletários que se organizavam sindicalmente em favor da transformação da sociedade é problemática, visto que a classe operária nunca chegou a ter a homogeneidade. A sua capacidade de organização, apesar da condição fabril compartilhada, era limitada por tais divisões.
A imprensa operária
Jornal "O Libertario". Edição de 01 de janeiro de 1922. Anno I,
Numero 1. CEDEM/UNESP
Os jornais eram o principal meio de circulação de ideias e propostas políticas dos trabalhadores entre si e entre eles e os militantes de esquerda. Em geral de duração efêmera e feitos de forma artesanal, os periódicos noticiavam os eventos em fábricas e em outras cidades, eram palco para discussões teóricas e denunciavam a opressão estatal e dos empregadores. Com nomes como A Plebe e A Voz do Operário, informavam e propagavam um discurso libertário e anticapitalista que retratava a condição precária dos operários e alimentava a esperança de que os próprios trabalhadores poderiam transformar a sua realidade.
Jornal "O Libertario". Edição de 04 de fevereiro de 1922. Anno I,
Numero 3. CEDEM/UNESP
Trechos da imprensa operária
Excertos retirados da matéria “As violências inomináveis da polícia”, publicada em A Plebe, em 10 de maio de 1919:
“A greve [de 1919] (...) segue o seu curso. O operariado, cônscio de seus direitos e da tristíssima situação em que se vê, sem quase meios de dar pão a seus filhos, está disposto a todas as injunções a que o queiram arrastar capitalistas e policiais, desde a compressão à fome mais negra. Ele resistirá, sem dúvida, até o fim, até que mais não possa. Mas, chegar a esse extremo não será conveniente nem para os industriais nem para a polícia. Um povo faminto é capaz de todas as audácias porque traz na alma todos os desesperos. A História é uma boa conselheira...” ― (PINHEIRO e HALL, 1979: p. 242-3).
Excerto retirado do texto “Relação do Segundo Congresso Operário Estadual”, publicado em Luta Proletária, em 1º de maio de 1908:
“Pelo que se refere à nossa tática na luta, temos seguido escrupulosamente o caminho que nos foi marcado pelos últimos congressos: à ação direta no seu verdadeiro sentido da palavra [isto é, greves e enfrentamento de patrões e o Estado]”― (PINHEIRO e HALL, 1979: p. 82).
Autor do texto original do projeto:
Paulo Fontes