A história do ABC e a identidade criada por seus moradores costumam ser associadas aos períodos de desenvolvimento industrial da região, atrelado à construção das primeiras linhas ferroviárias. Assim, os “modos de morar” também são vinculados a esta época. As vilas operárias do ABC são o tipo de moradia mais conhecido por grande parte da população. No entanto, os registros revelam que a história local é mais antiga. Existem evidências de pessoas se relacionando com o lugar desde antes da chegada dos portugueses na Capitania de São Vicente.

A paisagem foi se constituindo de maneira viva e dinâmica, já que as moradias de cada grupo social foram se sobrepondo umas às outras, guardando algumas heranças e apagando outras. Os núcleos urbanos de São Bernardo do Campo, Mauá e Ribeirão Pires, por exemplo, estão ligados a antigos aldeamentos eclesiásticos, enquanto as ocupações de Diadema e Rio Grande da Serra surgiram a partir de pousos de tropeiros. As diferentes morfologias de habitação (vilas operárias, cortiços, IAPIS, Cohab, favelas etc.) estiveram sempre sujeitas às condições sócioeconômicas e políticas de cada momento.  

O Estado e a economia foram agentes determinantes na ocupação do espaço por parte dos trabalhadores no ABC, assim como em outras regiões do Brasil. Suas ações muitas vezes fizeram com que as moradias das famílias dos trabalhadores se constituíssem de maneira precária. No entanto, o contato entre as pessoas no cotidiano, nas igrejas, nas festas e no futebol de várzea foram essenciais na formação da identidade dos trabalhadores e acabaram influenciando, igualmente, a construção dos movimentos de luta por moradia e melhores condições de vida, que marcaram a região a partir da segunda metade do século XX.

Tipologias de moradia do ABC

Aldeamentos indígenas: Pouco se sabe sobre as aldeias indígenas originais na região. Supõe-se que eram compostas por grandes construções organizadas ortogonalmente, formando uma praça central quadrada. Essas construções eram denominadas oguassu, maioca ou maloca (casa grande), e eram subdivididas em espaços de aproximadamente 6X6 m, onde residia uma família nuclear. Cada uma dessas subdivisões era denominada oca (em tupi) ou oga (em guarani) (WEIMER, 2005).

Residências coloniais: As residências do período colonial provavelmente seguiram o padrão das demais vilas coloniais conhecidas, sendo formadas por casas térreas ou sobrados baseados em lotes estreitos e profundos, construídos sobre os alinhamentos das vias públicas, com paredes laterais sobre os limites dos terrenos. Nessas casas não havia recuo e as ruas eram definidas pelos próprios alinhamentos das casas, sem calçamento ou passeios. No interior, dispunham salas e lojas junto às aberturas para a rua. Os cômodos de permanência das mulheres e os locais de trabalho eram voltados para os fundos e recebiam iluminação natural. Ligando os dois blocos principais, um corredor longitudinal ia da porta da rua até os fundos. Na porção central da casa, praticamente sem iluminação, encontravam-se as alcovas para dormir. O fato de se tratar de construções associadas ao trabalho escravo explica, possivelmente, o baixo desenvolvimento tecnológico no que se refere às estruturas e aos serviços de abastecimento de água, mantimentos e esgoto: todos os “serviços” nas casas coloniais eram realizados à custa do trabalho escravo, e esta situação perdurou quase inalterada até a Abolição (REIS Fº, 1997).

Vilas ferroviárias: Ao longo da São Paulo Railway (SPR), inaugurada em 1867, foram construídos estações e armazéns para recebimento e envio de carga. As paradas possibilitaram a instalação de pequenos povoados, surgidos entre final do século XIX e início do XX. A mais singular dessas vilas associadas à ferrovia é, sem dúvida, a de Paranapiacaba. A antiga estação São Bernardo, que hoje se chama Santo André, originou a cidade que leva seu nome. Nesse mesmo período, os povoados receberam as primeiras indústrias, que se beneficiavam da proximidade da linha para a importação de insumos e exportação de sua produção. Instalaram-se ali, no período, a General Motors (São Caetano do Sul); Moinhos São Jorge, Valisère Têxtil, Rhodia Química, Philips Iluminação e Pirelli Pneus (Santo André); Cofap e Isan (distrito de Capuava); e Porcelana Schmidt (Mauá). 

Cortiços

Cortiço, 1929. Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo​

A Primeira República (1889-1930) foi dominada pelo pensamento liberal. A ação do poder público para a produção habitacional popular consistia na concessão de incentivos ao setor privado, rejeitando-se qualquer iniciativa de construção direta de moradias ou regulação das relações entre locadores e inquilinos. Nesse contexto, os higienistas se encarregavam de determinar um padrão recomendável de habitação do ponto de vista sanitário e, ao mesmo tempo, moral (era comum a associação entre insalubridade e promiscuidade), de modo que a imposição de padrões de construção era acompanhada de tentativas de disciplinamento comportamental. 

Os cortiços emergiram nesse período como uma resposta informal à crescente demanda por habitações populares. As formas mais comuns eram as casas de cômodos (cada quarto sendo moradia de uma ou mais famílias) ou corredores de casas em um mesmo lote, compartilhando as “áreas molhadas” (lavabos, cozinhas e áreas de serviço). O que essas soluções tinham em comum era o fato de serem produzidas com finalidade rentista, isto é, eram moradias de aluguel, destinadas a gerar renda aos proprietários. Do ponto de vista de sua ocupação, destaca-se o fato de serem habitações plurifamiliares.

Vilas operárias

Vila Operária Ferroviária, Rio de Janeiro. 1906. Acervo do Arquivo Público
do Estado de São Paulo​

Em meados da década de 1920, quando São Paulo assumiu a posição de centro industrial do país, implantaram-se algumas das principais indústrias da região. A política habitacional consistiu meramente na concessão de incentivos ao setor privado. A vila operária se destacou nesse contexto como uma forma de provisão de moradias construídas em série. Essas vilas, baseadas no modelo da casa unifamiliar, eram não apenas uma solução higiênica e salubre, mas também moralizadora: buscavam difundir padrões de comportamento adequados, identificados com os valores burgueses (CORREIA, 2004). Não por acaso, muitos desses assentamentos dispunham de equipamentos coletivos (escolas, igrejas, clubes, pequeno comércio, etc). Evidentemente, apenas uma parcela dos trabalhadores teve acesso a essa solução de moradia: geralmente, trabalhadores mais qualificados, funcionários públicos, comerciários e outros segmentos da classe média. No município de Santo André, foram implantadas vilas na década de 1910 e 1920, para acolher trabalhadores da indústria, principalmente têxtil. 

A habitação social e os Institutos de Previdência: O período Vargas marcou o surgimento da habitação social no Brasil, com o Estado assumindo participação na produção direta de moradia. O movimento fora iniciado ainda no Governo Epitácio Pessoa, marcando a consolidação do seguro social, com a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão das Estradas de Ferro, em 1928. A iniciativa foi seguida pela criação das Carteiras Imobiliárias das Caixas de Aposentadoria e Pensões, em 1930, e, em 1933, dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que ampliaram sua ação para a construção massiva de conjuntos habitacionais verticalizados, substituindo as casas isoladas. A habitação proporcionada pelo poder público durante a existência dos IAPs (principalmenteentre 1946 e 1950, no governo Dutra) foi expressiva, tanto em termos quantitativos – aproximadamente 140 mil unidades habitacionais entre 1937 e 1964, sendo 20% no Estado de São Paulo – quanto em termos arquitetônicos, demonstrando que existem condições (ou ao menos potencial) para se implementar uma produção massiva de habitação social de qualidade.

IAPI: Os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) foram responsáveis por algumas das primeiras experiências na aplicação dos preceitos modernistas à habitação social: construíram grandes conjuntos verticalizados e multifamiliares, com adoção de blocos de apartamentos, pilotis e teto-jardim destinado a equipamentos-comunitários, racionalização do projeto urbanístico e do processo construtivo.O IAPI (do segmento industrial) foi o instituto que mais se estruturou para a produção habitacional: até 1950, tinha elaborado projetos para 36 conjuntos, alguns com mais de 5 mil unidades. Defendia-se a criação, junto à moradia, de escolas, serviços de assistência médica, centros comerciais, estações de tratamento de esgoto e reforço das redes de abastecimento de água. Optava-se por edifícios coletivos como solução para a otimização da construção. Estabelecia-se a socialização do terreno, que não deveria ser apropriado individualmente. O Conjunto Residencial Vila Guiomar, em Santo André, de autoria de Carlos Frederico Ferreira, é um dos exemplos mais representativos dessa iniciativa no ABC. Iniciado pioneiramente na década de 1940, foi concluído somente em 1955. O primeiro grande conjunto habitacional da região abrigou uma população de cerca de 8.000 pessoas (5% da população do município naquela época).

Favelas, loteamentos irregulares e moradias periféricas

Família de operário da Volkswagen. Favela em São Bernardo do Campo.
Déc. 1970. Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Após o golpe militar de 1° de abril de 1964, a intervenção do Estado se baseou em uma nova legislação, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), a unificação dos Institutos de Previdência no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, e as novas unidades para a atuação do recém-criado Sistema Financeiro da Habitação – SFH: os INOCOPs (Institutos de Orientação a Cooperativas Habitacionais), no âmbito federal, e as COHABs (Companhias de Habitação Popular), no âmbito estadual. A partir da década de 1970, passaram também a vigorar leis de controle urbanístico e ambiental, estaduais e municipais, influenciando fortemente na segregação socioespacial e na dificuldade de acesso à terra urbana. A despeito dessas tentativas de ordenamento territorial, as cidades continuaram a crescer, com interpenetração de usos e forte presença de loteamentos irregulares ou precários e favelas, além da ocupação de áreas de proteção ambiental. As favelas surgiram nos anos 1950, com a ocupação de terrenos vagos, geralmente inadequados devido a declives ou córregos, expondo as famílias a constantes riscos. Entre as primeiras favelas do ABC, estão a Quilombo dos Palmares, o núcleo Sacadura Cabral, Tamarutaca e Capuava. A característica comum a quase todas é a localização em terrenos acidentados, em áreas anteriormente destinadas a espaços de lazer ou equipamentos públicos.

A urbanização acelerada originou o crescimento desordenado das periferias urbanas. Apesar da importância econômica da região, o processo de expansão das cidades do Grande ABC se deu através da combinação do loteamento – muitas vezes precário – com a autoconstrução de moradias. A ocupação se deu à margem da lei, com loteamentos irregulares ou clandestinos, principalmente em áreas ambientalmente sensíveis e de proteção aos mananciais. Essa oposição entre a cidade legal (fortemente regulamentada, em acordo com os ditames do mercado imobiliário) e a ilegal (na espraiada e distante periferia de loteamentos clandestinos e áreas de mananciais) acentuou o processo de segregação e exclusão social.

Movimentos sociais por moradia

Matéria Revista O Cruzeiro: " Da favela ao conjunto residencial: para
muitos a vida mudou". 1971. Acervo Fundação Biblioteca Nacional

A partir do final da década de 1970, organizaram-se reivindicações coletivas por infraestrutura e serviços públicos nas periferias, ao mesmo tempo em que se rearticulou o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Com a recessão do início dos anos 1980, as favelas tornaram-se a alternativa predominante da população carente. A ocupação de terrenos, públicos e particulares, passou a ser coordenada por grupos organizados de defesa da moradia, com apoio de instituições como a Pastoral da Moradia, da Igreja Católica. As demandas resultaram em uma série de conquistas, e na implantação de políticas de urbanização de favelas, com as quais se abriram os primeiros canais de participação nas políticas públicas de habitação. A inserção, a partir da Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, dos artigos 181 e 182 na Constituição Federal, tratando da política urbana, representa uma significativa vitória dos movimentos por moradia no país – ainda que sua regulamentação tenha esperado mais de dez anos, até que fosse promulgado o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de Julho de 2001). Outro fenômeno que emergiu nos anos 1980 e se fortaleceu nas décadas seguintes foi o das associações e cooperativas populares de produção de moradia, com o objetivo de viabilizar a aquisição de terrenos e a organização baseada no princípio da autogestão.


Autor dos texto original do projeto

Marcos Virgílio