Um trabalho invisível

Empregadas domésticas seguram cartazes durante manifestação no sindicato patronal, em São Paulo. 23 de março de 1998. Regina de Grammont/Folhapress​

Costuma-se dizer que o serviço de casa “nunca acaba e ninguém vê”: a comida pronta na mesa, a roupa lavada, o cuidado com as crianças, os mais velhos e os doentes, a limpeza – e a lista está longe de terminar. É um trabalho duro e ingrato, porque seu resultado imediato desaparece em pouco tempo: a comida vai para a barriga, a roupa volta suja e a casa fica desarrumada num piscar de olhos. Além disso, na nossa sociedade, quem se dedica a ele não ganha nada ou ganha pouco. Mas é um trabalho fundamental: é ele que dá suporte aos demais trabalhadores e trabalhadoras que, todos os dias, saem de casa e mantêm a cidade e o país funcionando. Exatamente por ter função de manutenção, toda esta labuta diária, invisível e interminável é chamada de “trabalho reprodutivo”, em contraste com o “trabalho produtivo”. Enquanto um serve para que o trabalhador e a sociedade continuem de pé, o outro seria o que produz a “verdadeira” riqueza.

Babá brincando com criança em Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil. C. 1899. Arquivo Images2you​

Embora existam homens exercendo algumas dessas tarefas, na nossa sociedade, falar do trabalho doméstico nos leva a falar sobre o trabalho das mulheres. É verdade que elas hoje estão presentes no mercado de trabalho: nas filas de emprego, nas fábricas, no comércio, nas escolas, nos escritórios. Mas o trabalho que elas fazem nunca foi visto (nem remunerado) da mesma forma que o trabalho realizado pelos homens. Pior: sobre elas sempre recaiu, adicionalmente, o trabalho reprodutivo. Será que isso ocorre porque elas geram as crianças em seus ventres? Durante muito tempo, os direitos e garantias para as mulheres dependeram de uma ideia sem fundamentos científicos, mas muito difundida: as mulheres seriam naturalmente mais sentimentais, mais emotivas e mais “cuidadosas” que os homens e isso deveria ser levado em conta na definição do que elas poderiam ou não fazer no mundo do trabalho e da política. Aos poucos, tais pressupostos vêm sendo colocados em xeque. Paralelamente, cada vez mais, os homens se veem como co-responsáveis pelas tarefas domésticas e o cuidado com a família.  

Origem do trabalho doméstico como trabalho feminino

Reportagem no Sindicato das Domésticas, 16 de abril de 1953. Fotógrafo: Nilo. Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo​

Percorrer a história do trabalho doméstico permite compreender de onde vem a desvalorização deste trabalho e sua associação com as mulheres. Nem sempre houve separação tão evidente entre o trabalho realizado fora de casa e o trabalho da vida cotidiana. Em muitas partes do mundo, antes da disseminação das grandes fábricas e indústrias, o trabalho produtivo e reprodutivo eram realizados ambos em casa, divididos entre toda a família. 

No Brasil, até o fim do século XIX, a maior parte dos trabalhos era realizada por africanos escravizados e seus descendentes. As mulheres cativas e libertas assumiam uma grande diversidade de tarefas, muitas classificadas como domésticas: eram lavadeiras, amas-de-leite, cozinheiras, costureiras e assim por diante.

Carteira de Trabalho para Empregadas Domésticas, 08 de maio de 1973, Rio de Janeiro. Agência O Globo​

A definição do trabalho doméstico relacionava-se à proximidade com os patrões que o serviço exigia e, por isso, as qualidades apreciadas eram muito mais morais (honestidade, lealdade, humildade) do que técnicas ou ligadas a competências. Isso aparece nos antigos anúncios para a contratação de trabalhadores domésticos, como este exemplo retirado do Jornal do Comércio de 1890: "Precisa-se de uma criada fiel e de boa conduta, para arrumar quartos e cozer; na praça Duque de Caxias n. 25, trata-se das 10 horas em diante” (SOUZA, 2010). 

As primeiras tentativas de regulamentação do trabalho doméstico apareceram nos anos finais da escravidão, quando africanos e afrodescendentes compunham o contingente majoritário dessa mão-de-obra. No início do século XX, a discussão foi retomada, mas as propostas faziam exigências apenas para um dos lados, o das criadas, que deveriam portar uma caderneta de identificação atestando seu bom comportamento e seus antecedentes. Tais propostas foram, evidentemente, criticadas por militantes operários. 

O fato é que a inferioridade social e econômica a que as trabalhadoras domésticas estão ainda hoje submetidas pode ser melhor compreendida à luz das heranças históricas da escravidão.

As trajetórias de luta e resistência

Matéria Revista O Cruzeiro: "Domésticas querem lei trabalhista: A Subversão das cozinhas". 18 de março de 1967.​

O século XX foi marcado pelo surgimento de diversos movimentos de resistência e reivindicação por direitos no âmbito do trabalho doméstico. Pelo fato de que este tipo de trabalho implica, também, opressões raciais e de gênero, as manifestações não se limitaram a pautas puramente trabalhistas. 

Em 1931, por exemplo, foi criada a frente Negra Brasileira, organização que se propunha a lutar contra o racismo e por melhores condições para a população negra. Laudelina de Campos Mello (1904-1991), militante da Frente Negra e do PCB, criou a Associação das Empregadas Domésticas em 1936, em Santos – fechada pelo Estado Novo, em 1942. As principais reivindicações das trabalhadoras contemplavam a crescente entrada das mulheres no mundo do trabalho fora de casa, nas fábricas, nas lojas ou escritórios. A exigência de criação de creches era colocada como condição fundamental para viabilizar a contribuição feminina ao orçamento da família. 

Em 1961, foi fundada a Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas, em Campinas. Associações similares surgiram no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos seguintes, dando origem ao Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, em 1988. 

Carteira de Trabalho para Empregadas Domésticas, 08 de maio de 1973, Rio de Janeiro. Agência O Globo​

Atualmente, embora empregue um alto percentual da população, o serviço doméstico tem taxas baixas de formalização no Brasil. A PEC 66/2012, aprovada em 2013, reafirma alguns direitos para os trabalhadores domésticos que já constavam na carta constitucional de 1988 e na lei de 2006, mas também acrescenta outros, como proteção contra demissão sem justa causa, jornada de trabalho de 44 horas com 8 horas diárias, FGTS, remuneração por trabalho extraordinário e adicional noturno.

Apesar de já ocuparem uma grande diversidade de funções e terem se equiparado aos homens em termos de qualificação, as mulheres ainda ganham menos que os homens e o trabalho doméstico continua a ser feito majoritariamente por elas. Naturalizado, o cuidado da casa e dos filhos é visto como parte dos afazeres femininos; quando muito, as mulheres recebem "ajuda" dos companheiros. O termo "ajuda" revela que a responsabilidade é, de fato, atribuída às mulheres em tempo integral.  


Autores dos textos originais do projeto

Fabiane Popinigis 
Cristiana Schettini
Maria Liza da Costa
Matilde Ribeiro