Comunidades e Culturas

As classes sociais não se definem somente pelas relações que ocorrem no ambiente de trabalho. Existem diversas dimensões da vida em sociedade que são essenciais para a constituição da identidade coletiva do trabalhador, como a convivência no bairro, nas ruas e praças. Os espaços que definem o cotidiano não são meras rotas, caminhos da casa para o trabalho e do trabalho para casa: neles acontece a festa, a feira, o jogo. São lugares da alegria, do luto, da formação da consciência e dos valores morais; locais de reunião e, portanto, do encontro com o diferente. É na apropriação destes espaços que ocorre a Folia de Reis, a Congada, o futebol de rua, a festa junina, o rap e, assim, formam-se as redes de sociabilidade que possibilitam a todos o reconhecimento no grupo e a identificação com o outro.

A história do ABC, na condição de subúrbio em relação à cidade de São Paulo, estrutura-se pelo que o sociólogo José de Souza Martins chama de “pequena história”: fatos cotidianos vivenciados pelos moradores do subúrbio, em uma pobreza antagônica à “Grande História”; as memórias dos trabalhadores que, coletivamente, apreendem um espaço completamente diferente dos centros das metrópoles, nele constroem suas relações, seu tempo.  Foi nessa “pequena história”, produzida na vizinhança, nos bares e botequins, que surgiram a Escola de Samba Renascer, a Festa de Ferrazópolis (feita, essencialmente, por migrantes nordestinos), a Festa de São Bartolomeu (dos imigrantes italianos), o Movimento punk do ABC, o Movimento Hip-Hop do ABC, o ABC Rap, além de muitos outros movimentos sociais e culturais que marcaram a região. 

Depoimento 1: A vaquinha e a Rua Florida

Há muitos anos atrás, vamos dizer, nos idos de 1910, 1912, (...) quando ainda São Caetano pertencia a Santo André, então aqui era tudo mato, não era cidade, (...) esse local era uma fazenda, uma fazendinha pequena. (...) A dona desse sítio fornecia leite para a circunvizinhança. (...) Era um leite muito bom e, justamente, esse leite era fornecido por uma vaquinha muito bonita, muito bem tratada por sinal. A gente pode dizer inclusive, que essa vaquinha era cheia de ornatos, cheia de flores. Ela era florida e de tamanho trato, que essa vaquinha gozava dos seus proprietários, dos seus donos, vamos dizer assim. Então, ela tinha o nome de Florida. E todo mundo, quando precisava de leite, ia se abastecer (...) dessa vaquinha. (...) Quando esse povo se dirigia ao local dessa fazenda não falava de outra forma, a não ser: “Eu vou lá na Florida”. Vou buscar leite na Florida, Florida, Florida, e foi pegando. Aí foi se construindo uma ruazinha pequena, e essa rua ficou com o nome Florida em homenagem justamente à vaquinha (...). Passou o tempo e ela morreu, mas o local ficou com o nome de Florida. Então com o passar dos tempos(...) trocaram, puseram somente o acento, a rua em vez de ser Florida, há mais ou menos uma questão de dez, quinze anos, passou a ter nome de Rua Flórida.― Joaquim Cambaúva Rabello apud ALVES, 1984

 

Depoimento 2: Festa Junina

Tava chegando a friagem. Prá molecada era festa de São João que já vinha. Eu e mais os primo já tava ajudando o Padre Lauro fazendo as bandeirinha cheia de cor. Quando chegô o dia da festa eu já fiquei o dia tudinho ajudando a mãe fazê os doce. Ela era doceira de mão cheia. (...) Enfim, chegava a hora da festa, prá ficá oiando as moça.Tinha quadrilha, cadeia, quentão, mas eu gostava mesmo era das batata-doce assadinha na brasa. E foi aí que nóis tava tudo em volta da fogueira e o Tião, que era danado da vida, inventô de pulá a fogueira. Nóis nem se animamo porque tava muito alta e nem dava prá pulá. Aí o Joca, mania de sê bão porque só vendo falô: “Eu pulo, tenho as perna comprida que só!” (...) Pulô alto feito cabrita apressada, esbarrô nas brasa do outro lado e convenceu que era bão mesmo! E agora ele ia fazê a melhor coisa. Pulô de través. Minha nossa senhora do Guardo! Dessa veis tava meio lerdo o certeiro e caiu com a perna na brasa, e nóis só ouvimo a gritaiada. Dele e do povo apavorado de tudo aquilo. E lá se foi o Joca carregado, aos grito pro consultório do Dotô Lucas. Sofreu feito cão, nóis ouvia os grito dele. (...)Fiquei triste, foi-se embora a Alice, filha do Dotô, que teve de í prá dá ajutório ao pai. Eu fiquei ali com as batata, até que queria ficar no lugar de Joca. Só por ela, claro.― José Gabriel Matias apud ALVES, 1984

 

Depoimento 3: Grupo de Teatro Forja

Vi com meus próprios olhos, no término das peças, dezenas de amigos meus sensibilizados pelas emoções. Fiquei contente e emocionado também. No dia seguinte, lá na fábrica, aí é que eu senti como o teatro muda a cabeça dos seres humanos. O pessoal não discutia como normalmente faz, sobre o futebol, churrascada ou Silvio Santos, mas sim sobre os personagens da peça.― Darcy L. Silva apud ALVES, 1984

 

Depoimento 4: Juventude negra e experiência associativa no RAP de São Bernardo

Tudo começou com a aglomeração espontânea dos meninos e meninas nas imediações da Praça da Prefeitura, mais precisamente ao lado da antiga pista de skatismo. O discurso dos rappers locais aumentou a aglomeração e a liderança, ainda plenamente desconhecida pela cidade dirigiu-se ao Departamento de Cultura da Secretaria de Educação, Cultura e Esportes para solicitar equipamentos de som. Os funcionários foram orientados a oferecer e retirar na hora combinada. Nada mais. Semanas depois, o grupo volta e solicita tablado. Construiu-se um tablado. O movimento cresceu, criou conexões paulistas e brasileiras. Vários nomes nacionais ali estiveram e alguns deles eram propriamente da cidade. Antes do processo de espetacularização conhecido da disseminação das "posses", o grupo sãobernardense desejou transformar em livro sua experiência oral. Nasceu uma obra hoje rara e já trabalhada pelos estudiosos da cultura urbana, presente nos espaços de memória regional. Por sugestão do grupo, denominou-se ABC RAP e foi publicada pela Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo.― ALVES, 1984

 

Autor do texto original do projeto

Luiz Roberto Alves