Caminho Indígena

Caminhada na mata. © Vallandro Keating in Caminhos da conquista - a formação do espaço brasileiro, Terceiro Nome, 2008

A região do sudeste paulista era habitada por povos indígenas há pelo menos 10 mil anos. O cenário encontrado pelos europeus entre o litoral, a Serra do Mar e o planalto, era não só de grande diversidade, mas também de disputa de território entre grupos indígenas. Nos relatos da época predominam grupos tupis como Tupinambás e Tupiniquins, grupos Guaranis, muitas vezes chamados de Carijós, e também grupos jês como os Guaianás, Kaingangues e Maromomis, Guarulhos.

Ao longo da história, estes povos desenvolveram diferentes sistemas de aproveitamento e manejo dos recursos naturais, além da agricultura em roças. No planalto, a caça era praticada tanto em áreas de campo, usando arco e flecha, lanças e propulsores de dardos, como em áreas de floresta, usando armadilhas. Clareiras para as roças de mandioca ou milho eram abertas em áreas florestadas, usando-se machados de pedra. No litoral, a pesca marítima e a coleta de moluscos nos mangues exigiam outras tecnologias, como embarcações, redes de pesca, arpões e anzóis.

Apesar de se dedicarem a todas essas atividades produtivas, os índios não as concebem como trabalho, no sentido que nós atribuímos à palavra. E só produzem na medida do necessário. Praticamente todas as atividades de produção são coletivas, voltadas para o sustento direto da aldeia. Caçar, pescar, plantar e preparar os alimentos são atividades praticadas de forma integrada a ciclos rituais, festas e brincadeiras. Assim, não há distinção entre “trabalho” e “lazer”, entre o que se é obrigado a fazer e o que se quer fazer.

Quando do encontro com os europeus, esta diferença na maneira de conceber o trabalho resultou em um grande choque cultural. Na medida em que se tentava submeter os índios ao trabalho forçado, logo se percebia a dificuldade em enquadrá-los na lógica colonialista da maximização da produção e do trabalho escravo. Assim surgiram preconceitos e estereótipos que pintavam os índios como preguiçosos e indolentes, preconceitos estes que perduram até hoje. 

Aldeia indígena e a primeira vila em Piratininga. © Vallandro Keating in Caminhos da conquista - a formação do espaço brasileiro, Terceiro Nome, 2008

Aldeia de Tibiriçá. © Vallandro Keating in Caminhos da conquista - a formação do espaço brasileiro, Terceiro Nome, 2008

Caminhos e trilhas

Muitos caminhos e trilhas ligavam o litoral ao planalto, transpondo a serra do Mar. De acordo com os registros coloniais, a trilha mais usada saía de São Vicente e percorria as margens do Rio Mogi (hoje Rio Cubatão). Chegava onde hoje fica Paranapiacaba (nome que significa “de onde se avista o mar”, em tupi-guarani) e de lá alcançava os campos de Piratininga. Esta trilha, bastante usada pelos Tupiniquins, ligava-se ao Peabiru, grande caminho indígena que atravessava as terras baixas da América do Sul, conectando-as aos sistemas de estradas pré-colombianas em terras andinas e chegando até o Pacífico.

José de Anchieta, numa carta de 1554, descreveu assim esse trajeto:

“O caminho é mui áspero e segundo creio o peor que ha no mundo dos atoladeiros, subidas e montes (...) Umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se, por ser o caminho tão mau e ter ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos” (ANCHIETA, 1554).

Trajetória de Martim Afonso de Sousa até São Vicente e o caminho até a norda do campo. © Vallandro Keating in Caminhos da conquista - a formação do espaço brasileiro, Terceiro Nome, 2008

João Ramalho e as origens da escravidão indígena

A figura de João Ramalho, lendário português que se associou ao grande líder tupi Tibiriçá, casando-se com sua filha Bartira, é uma peça importante desta história. Ramalho aproveitava-se das guerras frequentes travadas pelos tupis contra os kaingangues pela conquista do planalto de Piratininga: apoderava-se dos inimigos capturados, para oferecê-los como escravos. Os principais compradores eram os navegantes de diversas nacionalidades, que ancoravam para abastecer suas embarcações no local onde hoje se encontra a cidade de São Vicente, à época conhecida como “Porto dos Escravos”. Para proteger os índios da escravização, os jesuítas fundaram um colégio e um aldeamento mais acima, em Piratininga, onde hoje está a cidade de São Paulo. O paradoxo é que, ao colocá-los sob a sua proteção e introduzi-los ao cristianismo, os jesuítas não os salvavam do trabalho forçado nas missões e nos aldeamentos.

Porto indígena de Piaçaguera, início de subida para o planalto.